sexta-feira, novembro 17, 2006

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é feito de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E, enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.


Luís de Camões
Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E as leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbdita a frase o busca
E o ‘scravo o ritmo serve.


Ricardo Reis
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade

Que na ilha extrema do Sul se oulvida.
É a que ansiamos. Ali, ali,
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua.
Ah, nessa terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. Ali, ali,Que a vida é jovem e o amor sorri


Fernando Pessoa

quinta-feira, novembro 16, 2006

Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tronem
Da estatura da sombra

Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.


Ricardo Reis

terça-feira, novembro 14, 2006

Fim

Quando eu morrer batam em latas
Rompam aos soltos e aos pinotes
Façam estalar no ar chicotes
Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaizado à andaluza
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro


Mário de Sá Carneiro
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem, vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou a minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo,
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: ”Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa

segunda-feira, novembro 13, 2006

Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa que é linda

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


Fernando Pessoa

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente .

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


Fernando Pessoa

sábado, novembro 11, 2006

Dia de S. Martinho

Martinho era soldado
Do grande Império Romano,
Fazia sua ronda normal
Mas sempre com olhar humano

Noite de tempestade fazia
Martinho gelado estava,
Ao longe um mendigo tremia
Seu corpo depressa gelava.

Martinho ao ver tal situação
Foi ter com o mendigo doente.
Surpreendente foi a sua reacção,
Metade da sua capa deu ao carente.

Com frio Martinho ficou
Mas o seu humano coração
Com a medida que tomou
Bem merecia uma benção.

Martinho voltava ao quartel
Consciente que tinha feito bem,
E seus olhos de mel
Felizes ficaram também.

Mas, de repente, a tempestade
Estava rapidamente a passar.
Apareceu um Sol de liberdade
Calor Martinho passou a gozar.

Martinho ao chegar então
Uma imagem de Deus viu,
Deus benzeu seu coração
E a Martinho obrigado pediu.

Martinho ao viver tal situação
Deixou o exército e converteu-se.
Passou a ser fiel cristão
E a sua alma enriqueceu-se.

Para um convento Martinho partiu
Em oração eternamente ficou,
Pelos pobres ele sempre pediu
Os carenciados ele muito amou.

Todos os anos a 11 de Novembro
O Sol volta por Martinho,
Não aparece a chuva de Dezembro
Mas sim um clima quentinho.

Martinho é Santo verdadeiro
Que protege os coitados,
Continua o mesmo cavaleiro
Que amou todos os carenciados.